Ditadura e futebol
Observa-se que o futebol tem um poder avassalador sobre a sociedade e os governos. Observa-se que em plena ditadura, o Brasil era governado pelo general Emílio Garrastazu Médice (1970), governante, este, responsável pela época mais cruel da ditadura militar. Centenas (ou milhões, não se sabe ao certo) de prisioneiros políticos torturados nas celas do regime, a censura era total, o Brasil vivia um clima tenso, ameaçador, sangrento.
Durante as eliminatórias e a Copa de 1970, no México, porém, tudo isso foi esquecido. As emissoras de rádio e tevê tocavam de forma intermitente a marchinha que certamente inebriou o povo e se tornaria um grande sucesso:
"Noventa milhões em ação/ pra frente Brasil/ do meu coração / todos juntos, vamos, / pra frente Brasil / Salve a seleção / De repente é aquela corrente pra frente / Parece que todo o Brasil deu a mão / Todos ligados na mesma emoção / Tudo é um só coração (...)”
A letra da referida musica, por si só, diz tudo. De repente, o Brasil era "90 milhões" numa ação única. Se as coisas fossem desta forma, se era realidade neste país que havia tanta harmonia e felicidade, então como explicar a censura aos meios de comunicação, de livre pensamento, a tortura, a cadeia? Por que não havia liberdade política no país? Por que o clima era de medo e angústia? São questão não respondidas pelos mesmos, e até hoje silenciada.
É evidente que, nesse caso, o enaltecimento da pátria é uma grande inverdade, sendo apenas uma peça de propaganda política, uma tênue cobertura de verniz onde são depositados a real natureza do regime militar. A superficial e tênue união entre ricos e pobres, entre militares e civis, entre pretos e brancos etc. Só encobria uma dura realidade de opressão e miséria da maioria.
Nesse contexto, torna-se mais clara a questão da hipnose coletiva gerada pela Copa do Mundo.
O que se pode observar de forma sintética e que desde que a humanidade existe há jogos coletivos, individuais, criação, brincadeira, arte, que mexem com a paixão popular dos povos e nações. Por conseguinte, o que se ressalta é que o brasileiro é bons nesse esporte a ponto de o grande historiador Inglês, Eric Hobsbawn (1995), citar em seu livro “A era dos extremos” que aquele que viu a seleção brasileira jogar não pode negar ao futebol a condição de "arte". Ou seja, em tempo: somos bons, somos artistas da bola, mas não somos imbatíveis nem insuperáveis.
O poder político usado pelos militares a partir do golpe de 1964, e intensificado com a posse de Médici, em 1969, tinha o objetivo, de controlar o povo, e empregava de forma clara e segura a imprensa em geral, principalmente a esportiva. O governo ditatorial empregava o futebol brasileiro, principalmente com o Tri-campeonato, obtido na Copa do Mundo de 1970, para simbolizar o progresso do país.
Em derivação, mesmo em face de toda essa repressão, ocorreu um fato extraordinário, que é o do "contra-revolucionário" João Saldanha, técnico esse que ocupou o cargo de técnico da seleção até 1969, quando foi substituído por Jorge Lobo Zagallo. Saldanha, "Comunista de carteirinha", recusou um pedido de Médici: a convocação de Dadá Maravilha, nesta época, jogador do Atlético Mineiro, time do presidente Médici. A justificativa dada por Saldanha pela sua saída foi de que: "O Médici manda no país, quem manda na seleção sou eu".
Mesmo assim, não se observa que esse tenha sido o único motivo para a demissão do técnico. Acredita-se que desde que a seleção se classificou para a Copa de 70, Médici passou a se incomodar com Saldanha, e só se deu por satisfeito depois de expulsá-lo.
Um cordão que se ouvia, nas alcovas políticas daquela época era de que: O torturado escuta ao fundo seus algozes vibrando emocionados por mais um gol do Brasil. O Ato Institucional número 5 (AI-5) já está em vigor há quase 3 anos completos. As liberdades democráticas no Brasil foram totalmente sufocadas por um aparato repressivo violentíssimo que persegue duramente os opositores do regime militar instalado desde 1964.
Como citado anteriormente, qualquer manifestação contrária às diretrizes políticas estabelecidas pelo governo Médici pedia a reação imediata de todo um aparato militar, policial e político especializado em seqüestrar, destruir, violentar e sacrificar existências humanas. Estudantes, professores, músicos, jornalistas, advogados, políticos oposicionistas, atores e toda a comunidade pensante e politicamente ativa em nosso país foi aos poucos desmobilizada, amordaçada e agredida.
Lideranças aparecerem e tentaram pela via da luta armada, mas nada foi conseguido com essa tentativa frustrada. Grandes e expressivas personalidades públicas brasileiras conhecidas naquela época foram forjadas no confronto direto com as autoridades daquele período, tais como: José Serra, Fernando Gabeira, José Dirceu, José Genoíno, Fernando Henrique Cardoso, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Frei Betto, Dom Paulo Evaristo Arns, e outros importantes nomes da história de nosso país ganharam relevância a partir de seu engajamento no movimento estudantil, nas guerrilhas urbanas, na oposição franca da igreja em relação à ditadura, a partir de manifestações de repúdio as arbitrariedades praticadas em nosso país, por conseguinte, outros, como o deputado Rubens Paiva e o jornalista Wladimir Herzog, pagaram com a própria vida por suas atitudes de contestação ao duro regime que se impôs ao Brasil.
A coação, repressão e o medo constante era, então, assunto da minoria. O assunto era discutido em círculos fechados, dentro do próprio governo ou então em locais reclusos, onde se reuniam pessoas interessadas em desestruturar e combater as afrontas e atrocidades que se cometiam em nome da “ordem e do progresso” em nosso país. Somente uma elite cultural formada por pessoas que conseguiam discernir com clareza o que estava acontecendo no Brasil tinha condições de se articular contra as irregularidades.
O distanciamento a qual era submetido o povo brasileiro resguardava e assegurava ao governo militar maior tranqüilidade para operacionalizar a perseguição que empreendia aos “comunistas” infiltrados no país. A eles se destinava o pau de arara, o “telefone”, a cadeira do dragão, os afogamentos, choques elétricos e também os congelamentos aplicados como duras sanções a seus “radicalismos”, ou seja, toda forma de tortura era permitido, nos subterrâneos da ditadura, fato este, que era pregado abertamente por todos os ministros e militares daquela época.
Desta forma para se manter o povo alheio e distante, além de silenciar o mesmo em relação ao que estava acontecendo, nos bastidores da política, de torturas e mortes, era uma política fundamental onde se observa que o governo detentor de “cartas debaixo de sua manga” fosse capaz de tornar o jogo favorável a seus interesses. O primeiro elemento que colocava a grande maioria da população do seu lado era o progresso vivido no Brasil daquele início de anos 1970, conhecido historicamente como “Milagre Econômico”.
Instilado por empréstimos vultosos e patrocinado por obras de infra-estrutura gigantescas, coma finalidade de atrair investimentos e grandes multinacionais para nosso país, os governos militares transformaram o Brasil em um grande campo de obras e permitiram a abertura de milhares de vagas de trabalho.
Desta forma a prosperidade econômica permitiu que os brasileiros vivessem em melhores condições. O dinheiro acumulado pela população poderia e devia ser aproveitado para liquidar o sonho da casa própria em módicas prestações pagas ao Banco Nacional de Habitação (BNH), para adquirir um automóvel (e dessa forma estimular o crescimento da nascente indústria automobilística que instalara no Brasil) ou ainda ter mesa farta, e também alegrais advindas com a Seleção amarelinha nos gramados internacionais
O referido “Milagre” pregado pelos ditadores, de certa forma, iludia os brasileiros com produtos, permitindo assim o consumo farto, para pessoas que até então mal conseguiam pagar pelo pão de cada dia e ainda alimentava o sonho de um futuro melhor com a criação das cadernetas de poupança. Observa-se o que ninguém anunciava, para este mesmo brasileiro, humilde, trabalhado, era o que ninguém sabia, até porque os órgãos noticiosos do país passavam por rigorosa censura naqueles anos, era que os custos futuros proveniente desses vultosos empréstimos obtidos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ao Banco Mundial e a bancos americanos e europeus iriam levar o país a vivenciar duas décadas e meia de recessão econômica, endividamento recorde no mercado mundial, pagamento anual de juros a níveis altíssimos e, conseqüentemente, a um retrocesso em todas as conquistas artificialmente obtidas naquele período.
No entanto, os altos índices de crescimento econômicos a que muito alegravam os brasileiros não constituíam o único recurso utilizado pelo governo para silenciar a turba. Ocorria também o expediente do “circo romano – política do pão e vinho”. Em nosso caso, já que não dispúnhamos de gladiadores e corridas de bigas, o negócio passou a ser o futebol, o carro forte da propagando do Governo.
Observa-se contudo, que com o fiasco obtido pela seleção brasileira na copa de 1966, disputada na Inglaterra, não deveria ser repetido no México. A disputa pela posse definitiva da taça Jules Rimet (que anos depois acabou sendo roubada e derretida pelos ladrões) com alemães e italianos (que eram também bi-campeões mundiais como os brasileiros) era, além de um ótimo divertimento, uma grande oportunidade para desviar a atenção da nação em relação aos problemas políticos que vivíamos em terras brasilis.
Ao iniciarmos o pressuposto trabalho, ocorre a hipótese de uma cena hipotética de torturadores gritando de alegria enquanto um preso político era torturado na sala ao lado estamos recordando cenas apresentadas no filme “Pra Frente Brasil”. A mistura de emoções tão distintas em relação ao o medo e a dor por parte dos prisioneiros vítimas de humilhações e privações e, de outro lado, a entusiástica alegria de torcedores pulando nas arquibancadas dos estádios do México ou celebrando pelas ruas das cidades brasileiras permite uma necessária e importante reflexão acerca da utilização política do esporte.
A desmobilização popular que teoricamente foi articulada pelo governo Médici através da utilização das partidas da seleção comandada pela seleção brasileira no México foi extremamente eficiente no que se refere a calar de vez qualquer articulação contra a prisão de oposicionistas de esquerda, referidos comunistas e de pessoas inocentes. A recepção planejada pelo governo ditatorial, elaborada de forma minuciosa e estrondosa pelos governantes da época aos heróis do tricampeonato mundial poderia ser realizada até mesmo por governos democraticamente eleitos (como se observa nas conquistas, obtidas pela nossa seleção em 1994 e 2002 quando o Brasil foi tetra e penta campeão mundial de futebol, respectivamente), contudo, a manipulação da mídia através da censura não estaria em execução no caso de regimes democráticos da época
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